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Chico, o acontecimento

Já quis sair por aí feito missionário da MPB, abordando desconhecidos no ponto de ônibus: “Boa tarde, o senhor já ouviu Construção hoje? E a senhora, conhece a obra completa de Chico, inclusive as menos ouvidas como Fado Tropical?”.

Esta crônica era pra ser sobre outra coisa. Talvez a farsa do ‘melhor futebol do mundo’ dos europeus, ou a nova mania de pendurar plantas no banheiro. Mas Chico Buarque fez 81 anos essa semana e quando um poeta maior sopra velas, o resto que espere.

Porque Chico não é só um cantor, um escritor ou um homem bonito com um cigarro meio apagado entre os dedos, Chico é um acontecimento. O acontecimento Chico Buarque. Ou, como diriam os millennials: patrimônio nacional. Já os bolsominions, numa espécie de homenagem involuntária, preferem: comunista desgraçado.

Tenho uma admiração por Chico que hoje chamo de admiração, mas que durante muito tempo atendeu pelo nome de obsessão. Já quis sair por aí feito missionário da MPB, abordando desconhecidos no ponto de ônibus: “Boa tarde, o senhor já ouviu Construção hoje? E a senhora, conhece a obra completa de Chico, inclusive as menos ouvidas como Fado Tropical?”.

Lembro do assombro que foi escutar Chico pela primeira vez. As frases dele pareciam esculpidas, as palavras terminavam em proparoxítonas que caíam como marteladas delicadas. Máquina, lógica, pálida. E havia sempre uma dor do mundo que, quando passava por ele, ganhava cara de gente.

Ouvir Chico é uma forma de suspensão. Um levitar que não depende de substância ilícita nenhuma, apenas da música que vem da escolha certa das palavras. Ele escreve como quem toca, com pausa, ritmo, tensão e alívio. Sua prosa tem melodia, sua melodia tem prosa.

Às vezes olho uma foto recente dele, ainda com aquele mistério meio blasé dos que sabem das coisas e não contam, e me pergunto: será que Chico tem ideia da dimensão que tomou? Que virou trilha sonora de resistência, alicerce de afeto e código sentimental entre gerações?

Não sei. Mas sei que enquanto houver Brasil, mesmo que torto, rachado, esburacado, haverá alguém dizendo baixinho: “Já ouviu Chico hoje?”. E se a resposta for sim, a gente segue mais bonito.

Feliz aniversário, poeta.

Texto: Elias Cavalcante (Escritor, jornalista e publicitário. Escreve sobre o cotidiano).