in

Era pra ser sobre meu pai

Antes que pais e filhos possam se preocupar com churrasco e parafusadeiras, a polícia precisa parar de matar.

Era pra ser sobre meu pai, que toda vez que cortava o cabelo dizia que ia “dar um tapa no visual”, como se fosse um James Bond de Interlagos, ou sobre aquele dia em que a gente tentou fazer churrasco e quase incendiou a lavanderia. Qualquer coisa leve, meio nostálgica, meio besta. Porque é isso que se espera de uma crônica num domingo de Dia dos Pais.

Mas aí eu liguei a TV. E depois rolei o Instagram. 

E como é que eu vou escrever sobre meu pai, se tem pai enterrando filho todo dia? Filho sem arma, com as mãos para cima, levando três tiros de fuzil na cabeça. Três tiros. De fuzil. Na cabeça. Embaixo de um viaduto em São Paulo. Em 2025. Com câmera ligada e tudo.

Uma semana antes, aconteceu outra vez: em Paraisópolis, um jovem de 24 anos, rendido, dentro de casa, de mãos erguidas, foi baleado. As câmeras corporais estavam ligadas e registraram o jovem sendo alvejado. Foi uma execução, ponto. 

Ninguém mais tem coragem de chamar de caso isolado. Até a mídia já abandonou esse disfarce. O roteiro continua o mesmo: pobre, rendido, desarmado, morto.

O governador Tarcísio, aquele que falou que ia tirar as câmeras dos uniformes, colocou como secretário de segurança um ex-policial expulso da ROTA por matar demais. Eu repito porque parece erro de digitação: expulso da ROTA por matar demais. O resultado dessa equação é previsível: 61% de aumento nas mortes cometidas por policiais. Enquanto o resto do país baixa os índices, São Paulo sobe. Dá tiro pra cima, dá tiro pra baixo e depois chama isso de política pública. 

Aliás, essa lógica do bangue-bangue institucional também matou um dos próprios. Um policial civil, numa operação no Capão Redondo, levou dois tiros no peito de um sargento da ROTA. Colegas de farda, operando na mesma comunidade, sem saber quem é quem. Só sabendo atirar.

Era pra ser sobre meu pai, eu sei. Me perdoem por pesar o clima. Mas, antes que pais e filhos possam se preocupar com churrasco malpassado e parafusadeiras, é preciso que a polícia do Tarcísio pare de matar.

 

Texto: Elias Cavalcante

(Escritor e jornalista. Escreve sobre o cotidiano)