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Elza – Parte 03

A casa ainda sussurra seu nome. Porque foi ali, pedra sobre pedra, que finalmente construiu um lugar que era seu, por dentro e por fora

Depois da viuvez. Depois de Mombaça. Depois de aprender a respirar de novo. Você voltou para São Paulo. Começou do começo, numa casinha apertada no Capão Redondo — naqueles tempos, um dos bairros mais perigosos do mundo. Costurando dia e noite, foi juntando o que dava, até comprar um terreno no mesmo bairro onde seu marido havia morrido anos antes.

Foi ali que você levantou uma casa grande, aberta, com escadas, garagem, quintal, e espaço para as filhas, netos e visitas. Você dizia que escolheu o terreno porque era barato e bem localizado. Mas eu desconfio de outra razão, mais funda, mais sua: talvez, sem perceber, você quisesse redimir aquele chão. Onde havia dor, ergueu abrigo. Onde a vida desabou, você insistiu em recomeçar.

Você morou em algumas casas: a da infância, a do casamento, a da Vila São José. E é dessa última que eu falo. A casa que virou centro de tudo. Onde cresci com meus irmãos e  primos, onde sempre tinha alguém passando, ficando, comendo, rindo, chorando. 

Você ergueu sozinha, passo a passo, negociando com os fornecedores, vigiando os pedreiros, impondo seu ritmo às paredes que iam tomando forma. Naquele espaço esculpia um lugar para existir, uma resposta ao mundo que até então decidia por você. Cada porta, cada janela, cada raio de sol que entrava na tarde era um pequeno ato de rebeldia, uma decisão sua finalmente tomada. 

Anos depois, com o Alzheimer avançando, você começou a pedir para ir embora. Queria voltar para casa, mesmo estando nela. Segundo os médicos, um sintoma comum. Mas repetir essa palavra tantas vezes, com tanta urgência, parecia mais do que confusão. Era uma tentativa de reencontro. Uma memória em ruínas tentando achar o caminho de volta.

Hoje, mesmo sem memória, a casa ainda sussurra seu nome. Porque foi ali, pedra sobre pedra, que finalmente construiu um lugar que era seu, por dentro e por fora. É a sua biografia escrita em tijolo e cimento, seu triunfo silencioso diante de um mundo que tantas vezes foi duro, desigual, cruel. 

É a prova de que você não aceitou o destino com obediência. Você respondeu à vida com força, com gesto, com alicerce. E no centro de tudo, ficou a sua marca: discreta e firme.

Texto: Elias Cavalcante (Escritor, jornalista e publicitário. Escreve sobre o cotidiano).