Para entender uma vida, é preciso voltar um pouco. Uma vida não começa sozinha. No início de tudo, quase sempre, está a mãe. É por isso que mergulho na história dessa mulher que te trouxe ao mundo. Não a conheci, e isso nunca me impediu de imaginá-la. Como se fosse possível reconstruir uma pessoa a partir de migalhas, rumores, retratos desbotados.
Ela se chamava Ana Analia de Carvalho. Teve treze filhos. Oito sobreviveram. O nome dela parece repetido, ecoando em si mesmo, como se desde o nascimento houvesse duas. Ana passou pela grande seca de 1915, que durou quase três anos e foi devastando o que ainda restava de verde nas folhas, de leite nas cabras, de água nos olhos. Dizem que, naquela época, as mulheres davam à luz pela manhã e enterravam à tarde, sem tempo de entender.
Recebi uma foto dela. Não sei quem tirou, nem quando. Fico olhando devagar aquele rosto seco, ossudo, as orelhas grandes como as tuas, o cabelo já cinza, também como o teu. Ela encara a câmera com um olhar firme, parado. Um olhar que atravessa o papel e diz: alguém vai me procurar, alguém vai tentar entender.
Trabalhou a vida toda na lavoura. Perdeu filhos. Ficou viúva cedo. No fim, já sem enxergar, andava guiada por um vira-lata chamado Leão. E foi ficando cada vez mais leve, até sumir do mundo. Morreu aos oitenta e dois.
Procuro você nela. Um traço, um gesto, uma sombra parecida. Mas nem toda vida dura se parece. O sofrimento muda de forma, de tempo, de tom. Cada um carrega o peso como pode. Você saiu pro mundo e o encarou, no entanto, havia um medo quieto, uma aflição pequena que vinha sem motivo. Sua mãe era diferente. Cruzava mato, lidava com bicho, atravessava rio. Mas nunca saiu dali. Nasceu e morreu no mesmo canto do sertão.
Tento reconstruir o que nunca vi. A travessia de uma vida difícil, feita com a cabeça erguida e a boca fechada. Uma linha que começa em Ana Analia, passa por você e chega em mim, que agora escrevo. A história de vocês não tem grandes feitos. Não tem medalhas, nem heranças, nem datas marcadas em pedra. Tem outra coisa. Uma força sem alarde. Uma persistência quieta. E isso me comove mais do que qualquer heroísmo.
Alguém tem que contar. Mesmo que seja com pedaços faltando. Nem que eu precise inventar o que não sei. Sigo te procurando nas coisas pequenas. Num gesto que me escapa sem que eu perceba. Num jeito de andar. Numa frase solta que sai da minha boca com seu sotaque. Sigo te procurando porque, no fundo, te procurar é também me reconhecer.
Texto: Elias Cavalcante (Escritor, jornalista e publicitário. Escreve sobre o cotidiano).