“Era manhã de terça-feira quando você se esqueceu como voltava para casa. Tinha 80 anos. Estava a caminho da manicure, trajeto que fazia semanalmente. De repente, as ruas se embaralharam e tudo pareceu muito estranho e confuso. Anos depois, quase sem memória, escrevo para lembrar de quem você foi.’’
Com essas palavras comecei, anos atrás, um diário. Queria resgatar sua memória, pedaço por pedaço, como quem tenta montar um quebra-cabeça sem a imagem da caixa. Pensei que escrevia por você. Mas era por mim. Era a minha maneira de suportar essa perda que antecede a morte e vai apagando tudo, devagar. O Alzheimer é isso: um sumiço lento. Às vezes penso que, no seu caso, esquecer também foi um jeito de se poupar: o corpo, cansado de tanto lutar, enfim encontrou uma saída.
Você ainda me chama pelo nome. Não porque se lembre de quem eu sou, mas porque esse nome, de algum modo, ficou. Você me chama pelo nome que foi dele, seu marido que morreu cedo. Quarenta e poucos. Um ataque fulminante, foi o que disse o médico. Você repetia a palavra “fulminante” com a dúvida de quem nunca entendeu direito. Como é que um homem saudável, que não bebia, que nunca fumou, podia simplesmente cair e não voltar mais? Não houve tempo para entender. Havia duas crianças para cuidar. Você guardou a dor e foi.
Sem rede de apoio, numa cidade cinza e fria, você voltou para o Ceará. Naninha pediu. Sua mãe. Ainda quero me debruçar com calma sobre quem foi essa mulher, essa sertaneja firme, afetuosa, de olhos negros, intensamente negros, que morreu cega. Foi ela quem ajudou com as crianças. Foi ela quem lhe ensinou a costurar e você costurou incansavelmente, noite após noite para sustentar as filhas.
Você refez a vida em Mombaça, essa Macondo do sertão: quente, parada, quase mágica. Era para ter ficado. Tudo apontava nessa direção. A cidade era quente, silenciosa, e havia um certo consolo naquele silêncio. Os dias passavam devagar. A máquina de costura fazia seu barulho de sempre. A panela no fogo. O cheiro de roupa limpa. O pano de prato secando no varal. Tinha uma rotina ali e a rotina tem esse jeito estranho de parecer um futuro. Mas você nunca foi muito de aceitar o que o mundo impõe. Nunca soube se render. Nem mesmo ao cansaço. Teimava em viver como se ainda houvesse um segundo tempo, mesmo quando ninguém mais acreditava nisso.
Anos depois, você voltou para São Paulo. Mas isso é história para outra crônica.
Texto: Elias Cavalcante (Escritor, jornalista e publicitário. Escreve sobre o cotidiano).