in

Elza – Final

Faltava algo essencial. Faltava o seu riso.

Hoje é seu aniversário. E é também o fim da série de textos que escrevi sobre você. Foram trinta dias tentando dar forma a algo que já não estava ali. Todas as manhãs, depois do café, eu me sentava, abria o notebook e tentava lembrar. Às vezes me vinha uma imagem: sua mão abrindo a janela da cozinha, o som do vidro correndo no trilho. Outras vezes, nada.

O plano era simples, pelo menos no início: juntar os pedaços da memória. Aquilo que sobrou da sua presença em mim, nas coisas, nos dias, nos outros. Escrever como quem recolhe cacos depois que o chão já foi varrido. 

Mais de uma vez, me perguntei se é possível reconstruir uma pessoa com palavras. Não aquelas palavras grandes, que costumam aparecer em discursos ou livros bem escritos. Falo das outras, as que parecem pequenas demais, quase inúteis, mas que talvez se aproximem mais da vida. No fim, nenhuma frase é capaz de conter uma vida inteira. Muito menos a sua. Ainda assim, eu escrevi. E ao reler, sinto um vazio que já estava ali desde o começo. Como se eu tivesse construído uma casa sem colocar o pilar principal. Faltava algo essencial. Faltava o seu riso.

Escrevi sobre o modo como você resistia. Escrevi sobre sua viuvez. Escrevi sobre a relação com sua mãe, com sua casa, com os outros. Mas não escrevi, ou não consegui escrever, sobre o riso.

O riso que aparecia no meio do caos, como quem entende o absurdo, mas não se rende a ele. O riso que desmontava a tragédia sem precisar negá-la. Talvez tenha sido isso que te fez seguir em frente. Não apenas força ou teimosia, mas o seu riso. A sua história só foi possível porque, no fundo, era a história de alguém que sabia rir. Mesmo quando nada mais fazia rir. 

Noventa anos. Sei que nada mais se parece com você: a mão trêmula, a voz apática, os passos tímidos. Por muito tempo, essa diferença foi uma dor profunda dentro de mim. Cresci com outra Elza: firme, inabalável, muitas vezes briguenta, outras vezes inflexível, mas sempre leve. Sempre soltando uma piada quando a vida precisava de leveza.

Chego ao fim desta série com o coração leve, surpreendentemente feliz por saber que, apesar de tudo — do mundo e das dificuldades da vida — você existiu. Você é minha avó. Avó de Viviane, Luan, Gabriel e Sabrina. Bisavó de Beatriz e Joaquim. Mãe de Fátima e Ivonete. E, por tudo isso, agradecemos pelo que você foi e pelo que permanece em nós.

PS: E hoje tem festa. E vai ter gente que você ama, gente que veio de Mombaça, de bem longe, de todos os cantos. Como disse Beto sem braço, o que espanta a miséria da vida é a festa. Então a gente festeja, minha avó. Porque é o que nos salva.

 

Texto: Elias Cavalcante (Escritor, jornalista e publicitário. Escreve sobre o cotidiano).